quarta-feira, 13 de julho de 2011

Como surgiu o espectáculo Brilharetes, levado à cena pelos Artistas Unidos, LAMA (Laboratório de Artes e Média do Algarve) e Molloy Associação Cultural.

Já nos finais dos anos 80, Antonio Tarantino ( que esteve em Almada em 2004, aquando da leitura cénica da sua peça A CASA DE RAMALLAH), largou a pintura (era um dos nomes conhecidos da Arte Povera Turinense) e começou a escrever teatro. Tinha para lá de 50 anos. Quando os Artistas Unidos o descobriram, graças às publicações dirigidas por esse grande crítico e nosso amigo que foi o Franco Quadri, quisémos logo fazer aquele teatro cheio de palavras, de imbatível ritmo. E fizemos os primeiros dois dos seus QUATRO ACTOS PROFANOS ( "Stabat Mater" e "Paixão Segundo João"). Como é nosso costume, publicámos os textos. E quando ficámos mesmo sem casa nenhuma (quando nos fecharam a Cadeia das Mónicas onde estreámos essas duas peças), continuámos a publicar textos. Que gostávamos de fazer sabia-se lá quando. Entretanto, o ano passado, durante o Festival de Almada, o João de Brito, que fazia um pequeno papel em A Fala da Criada dos Noailles que apresentámos na Culturgest, em conversa cá fora (eu fumo, passo a vida a vir cá fora), falou-me de "Brilharetes" que lera nos livrinhos de teatro e chegara a trabalhar na Escola. Ele só queria saber como obter os direitos; mas eu impus-me, com medo que ele fizesse este texto sem mim. "E quem seria o outro? E queres que os AU produzam? E... quando?" Nada garante que a conversa do João comigo não tenha sido uma conversa daquelas que os jovens actores têm com os encenadores tabagistas, os seus sonhos, fazer o Hamlet e o Taxi Driver, sei lá. Mas eu não podia deixar perder aquela hipótese. O João falou-me da hipótese de o Tiago Nogueira (que também entrava na mesma Fala da Criada) fazer o Brilharetes, propriamente dito. Aceitei, eles aceitaram-me, mandei uma carta ao Antonio Tarantino (gostamos muito um do outro, ele é sempre muito afectuoso com isso). E o João e o Tiago, a quem se juntou a actriz Joana Barros (que também entrava naquele espectáculo), começaram a desbravar o texto. Foi em Dezembro: eles ensaiavam, eu assistia (e podia ser mau!) duas a três vezes por semana, com a Joana combinava o que faziam sem mim. Num teatro como o de Tarantino, que quase só existe pela oralidade e pela extraordinária capacidade de invectiva, era importante um grande trabalho sobre a elocução, a pausa, a respiração, o andamento de cada frase. Acho que os surpreendi: recém-vindos de uma Escola Superior, nunca tinham sentido a necessidade de cuidar da elocução, da beleza do "r" apico-alveolar (tão mais expressivo do que o gutural) nem viam como dizer é quase tudo o que é possivel num texto literário como este, sem acção que não seja a das palavras, o tempo parado, a imparável lamentação ou a imprecação contra os poderosos. "Mas onde fazer?" "Não tenho teatro", disse. E começámos a olhar para datas. Eu estava mais ou menos livre no primeiro trimestre, ele, a "recibo verde". Assim começámos a ensaiar. E ensaiámos em Lisboa, e depois em Faro, Loulé, Sintra, Setúbal, Tavira, Alcobaça, Montemor. E estreámos no Cartaxo. A estreia foi bonita. E, como não temos teatro, esperámos por apresentar este espectáculo ao ar livre dos mais pobres, nos Silos da Romeira que o TMA nos indicou. Foram eles, o Tiago e o João quem, com o Rodrigo, descobriram este lugar abandonado, no fim do mundo. E nas fotografias que trouxeram, vinham alguns dos pobres alcoolicos que viviam neste mesmo Telheiro. Dois dias depois, na obscenidade das televisões, lá estavam eles. Eram romenos, chegaram a Portugal sem papéis, eram uns 40, houve uma daquelas coisas de caridade para alugar um autocarro e eles voltarem para a Pátria deles - de onde tinham fugido, à espera do sol e de dinheiro para viver. Durante dois dias, as televisões acompanharam, com o sentimentalismo de quem nos engana, o regresso desses romenos. Só os vimos até chegarem a França, num autocarro, noite dentro. Nunca mais soubémos deles. Mas é dedicado a eles, tantos, que fazemos aqui este espectáculo, aqui que trazemos os vagabundos, os vadios, os que-não-se-calam mas nada-dizem, esses restos de homem que Tarantino canta contra todas as noites e todos os esquecimentos, esses que a televisão visita de vez em quando, para, no nosso conforto burguês e pequenino, ficarmos cheios de medo: e votarmos, desistindo da vida. Pois, Tarantino não se esqueceu deste professor marxista que encontrou uma noite - a história é autêntica - , militante que chegara a cruzar nas festas de Turim, agora, vestido de mulher, agora a morrer, travesti, nos degraus da estação de comboios de Turim, não se esqueceu. E a literatura teve piedade, ainda agora olhamo-lo nos olhos, há noites em que ele nos faz chorar. E quem sabe, quem sabe, talvez estes rapazes e esta rapariga (a Joana Barros, o João de Brito e o Tiago), meus amigos, venham a cruzar-se com o velho escritor turinense, homem maior, já velho que é meu amigo, e, quem sabe?, será amigo deles. Daqui a pouco tempo, terá de ser, estamos todos a ficar velhos.
Jorge Silva Melo

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