sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Você não costumava entrar em filmes?

Entra-se na sala do Blakes Hotel, em Kensigton - onde Rourke faz questão de ficar sempre que viaja para Londres - sem saber o que se vai encontrar. Estamos no início de Janeiro, vésperas da estreia britânica de "O Wrestler", a que a imprensa local tem dado destaque generoso. As descrições dos encontros com o actor variam entre a irreverência politicamente incorrecta, com saudades do jovem Rourke (Rourke à revista "Empire": "For me, this whole crazy thing has never been about the fame or the drugs or the money - it's always been about the pussy") e o "mea culpa" com a fragilidade à flor da pele. Os jornalistas europeus que vieram para o "press junket" não precisam de se esforçar muito para pô-lo a falar, basta retomar onde a imprensa britânica o tinha deixado.
"Numa entrevista, disse que se identificava com o sentimento de vergonha em que a sua personagem vive. Em que sentido?" Rourke tem contado como, apesar de ter treinado intensamente para fazer as cenas de "wrestling" e apesar de ter ficado feito num oito, as cenas mais difíceis foram as que se passam no supermercado. O lutador aceita trabalhar na charcutaria de um supermercado para ganhar algum dinheiro - até ao dia em que um cliente o reconhece.
"Eu não queria fazer a cena", conta. "Acho que me recordava o estado em que vivi durante mais de uma década. Quando se vive em Los Angeles ou em Nova Iorque somos lembrados todos os dias que já não somos importantes, que ninguém nos quer. Uma vez, em Los Angeles, devia ser uma da manhã, fui a uma loja de conveniência comprar um maço de cigarros - há sempre sete ou pessoas na fila e um idiota gritou bem alto: 'Ei! Você não costumava entrar em filmes?' E eu só pensei: "Fuck, deixem-me sair daqui!' Ele começou a dizer os filmes errados e chamou-me pelo nome de outra pessoa... Estão constantemente a lembrar-nos que somos um fracasso, que batemos no fundo."

Rourke impôs-nos anos 80 como um anti-herói existencial cheio de charme insolente, uma alternativa aos "all-American boys" que eram a maior parte dos actores da sua geração (Tom Cruise e companhia). Em Maio de 1985, a revista "Face" deu-lhe a capa e o trono, proclamando: "Um Brando para os anos 80". Ele era um desses actores capaz de definir um filme, um actor-autor (Johnny Depp deve-lhe qualquer coisa) mesmo quando a filmografia não estava à altura. É uma das coisas que surpreendem hoje: perceber que fez tão poucos filmes dignos de nota ou falhados, mas elevou-se acima deles. Em meados da década de 80, era um dos actores mais desejados de Hollywood, e a partir daí a sua carreira entrou numa curva descendente. Começou a ficar notório tanto pelas escolhas embaraçosas ("Orquídea Selvagem", "Harley Davidson and the Marlboro Man") como pelos "blockbusters" que recusava ("Os Intocáveis", "Platoon", "O Silêncio dos Inocentes", "Rainman - Encontro de Irmãos").

Os papéis não lhe interessavam ou não eram suficientemente bons para ele - ganhou a reputação de difícil, arrogante, "um pesadelo", segundo Alan Parker, que o dirigiu em "Angel Heart". Em 1991, virou as costas a Hollywood (depois de dizer que representar era "um trabalho de mulher") e foi atrás da sua paixão de adolescente: o boxe. Tinha 34 anos. Depois disso, só ouvimos falar dele pelas piores razões (detenções, acusações de violência doméstica). Tarantino mandou-lhe o argumento de "Pulp Fiction", oferecendo-lhe o papel de um ex-lutador de boxe (que acabou por ir para Bruce Willis), mas Rourke nem se preocupou em responder.

Entretanto, continuou a acumular más escolhas na filmografia. "Sin City" (2005), a adaptação da BD de Frank Miller, foi o mais perto que esteve de um "comeback". Mas não chegou a acontecer.
"Tive uma carreira durante algum tempo, uns cinco anos ou mais, e autodestruí-me por causa de regras que estabeleci para mim mesmo, e que tinham a ver com as minhas origens", diz. A voz anasalada, suave, à Brando, deu lugar a um timbre cavernoso - masculinizou-se (e não é certo que o regresso ao boxe não tenha sido uma tentativa de perseguir uma masculinidade idealizada). "Estava-me nas tintas para as consequências, e para a política da indústria de cinema, não tinha qualquer respeito por alguém que fosse uma figura de autoridade ou tivesse alguma coisa a ver com o financiamento ou a venda do filme. Tinha uma visão limitada, saída do Actors Studio, de que o que fazia só tinha a ver com representação. Era muito ingénuo em relação ao que pensava que devia ser a profissão. Trazia comigo as regras com que cresci, que eram as regras erradas. Tinha tudo a ver com ser duro, com respeito e orgulho, e isso não resultou bem em Hollywood. Pensei que podia vencer o sistema e o sistema deu-me cabo do coiro. Toda a dureza aprendida na rua e nos desportos que pratiquei não se aplicava à profissão de actor. Essa atitude temerária não foi benéfica, e também desenvolvi uma enorme armadura, física e mental, uma dureza e uma alienação que na verdade escondiam cacos que tinham a ver com abandono e vergonha."

Darren Aronofsky, o realizador de "O Wrestler", passou um ano a tentar arranjar financiamento para o filme, mas os potenciais produtores recuavam assim que sabiam que Rourke estava associado. Assim que aceitou entrar no filme Rourke e o realizador reviram o argumento "palavra a palavra" (segundo Aronofsky), de forma a torná-lo mais pessoal para o actor. Aronofsky contou que Rourke personalizou todas as linhas de diálogo que diz no filme.
"Quando Darren me pediu para fazer o filme, disse: 'Quero que faças isto, e não podes fazer aquilo...'. Não parava de apontar o dedo à frente da minha cara. Há 15 anos eu ter-lhe-ia partido o dedo. Há pouco tempo perguntaram-me se eu podia ter feito o mesmo papel há 15 anos e respondi de imediato: 'sim'. Mas fiquei a pensar nisso: não."

Em pessoa, Rourke parece o cruzamento entre um cowboy (as botas) e um mosqueteiro (pêra e bigode). Tem a camisa aberta até pouco acima do umbigo e bebe Evian directamente pela garrafa, como se fosse cerveja. A boca deixa entrever um dente de ouro superior. O dedo médio da mão direita tem tatuado "Joe", tributo ao irmão mais novo que morreu de cancro há quatro anos e de quem Rourke diz ter cuidado na fase terminal. As mãos parecem inchadas. Os olhos são o único sinal visível da sua anterior existência. E tudo isto é uma versão francamente melhorada do que se vê em "O Wrestler".

Em Dezembro, a revista "Vanity Fair" pedia: "Dêem um Óscar a Mickey Rourke", relembrando a célebre transformação física de Robert De Niro para "Touro Enraivecido" e notando que Rourke elevara a fasquia, "desperdiçando o corpo e a vida ao longo de duas décadas de forma a interpretar com convicção um 'wrestler' decadente". Mais ou menos ao mesmo tempo, o crítico Richard Corliss assinalava na revista "Time" que o filme "oferece a fascinante visão de um actor que é o seu próprio monstro, o seu próprio Incrível Hulk".

Já ninguém estranha que este homem colossal tenha junto a si um chihuahua. Rourke o actor agradeceu aos seus cães quando recebeu o Globo de Ouro e tem sido fotografado com Loki nos braços, a sua armadura envolvendo o cão minúsculo, mas com uma vulnerabilidade tão notória que não se pode deixar de perguntar quem é o protector de quem.

Um jornalista fala em Óscares. Estará Mickey Rourke pronto para um KO? "Quão importante seria?", quer saber o jornalista.
"Nesta altura do campeonato, tudo é importante. Só o facto de estar numa sala com pessoas que querem falar comigo novamente é importante. Antes, era só eu e a Loki. A Loki acompanhou-me sempre. Houve um momento na minha vida em que era só isso que eu tinha. É por isso que ela é tão importante."

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009


Este tem sido o meu irmão, namorada, tudo o que pode estar mais próximo de alguém. Pequeno passo até ao Saldanha, grande passo para uma maior cultura cinéfila.