domingo, 19 de junho de 2011

A carta do Saramago à sua avó

"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que ama...ssaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.

É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua"

quarta-feira, 15 de junho de 2011

ESTREIA HOJE, DIA 15 DE JUNHO, NOS RECREIOS DA AMADORA, às 21:30



Sinopse
em 2009, produzimos “O Saguão” de Spiro Scimone, espectáculo que nos deu imenso prazer fazer e que teve, junto do público, boa recepção. Uma escrita intensa, frenética, construída com diálogos curtos e directos, criando inesperados efeitos, ora cómicos, ora trágicos. «Teatro necessário, tão simples»; foi assim que Jorge Silva Melo falou do teatro de Spiro Scimone. Decidimos voltar. Com “O Envelope”, entramos no universo de Kafka, nos meandros da violência da discriminação. As personagens não são apenas vítimas, mas também executores dessa violência. Um mundo onde os valores humanos pouco contam. Um mundo que teimosamente queremos denunciar.

Ficha Artística
Autor Spiro Scimone
Tradução Ana Maria Bigotte Vieira e Clelia Bettini Encenação Jorge Silva
Interpretação Bruno Huca, Daniel Martinho, João de Brito e Luís Barros
Cenografia e Figurinos Teresa Varela Desenho de Luz Pedro Domingos Design Gráfico Rui Pereira Fotografia A. W. Barradas
Produção Executiva Gislaine Tadwald e Joana Paes
Produção Teatro dos Aloés
Maiores de 12 anos

LocalInformações e Reservas - 218140825/916648204

Recreios da Amadora - de 15 a 26 de Junho - 4ª a Sábado às 21h30 e Domingos às 16h.
Teatro Mirita Casimiro - 9, 10 e 11 de Setembro - 4ª a Sábado às 21h30 e Domingos às 17h.
Teatro Meridional - de 14 a 25 de Setembro 4ª a Domingo às 22 horas

PreçoRecreios da Amadora
10€ Normal
5€ - Maiores de 65 e Menores de 25 anos, residentes no Concelho da Amadora, grupos de mais de 10 pessoas, profissionais e estudantes de teatro