sábado, 7 de agosto de 2010

Aqui fica uma reportagem feita por uma amiga minha:

7 a 16 de Julho de 2010 • Gazeta do Cenjor

Cultura
A música toca baixinho, junto à bilheteira do Teatro Meridional. Vim assistir ao espectáculo “Saguão” de Spirio Scimone, uma produção do Teatro dos Aloés, acolhida pelo Meridional,
no seu espaço em Lisboa,
e para falar com João de Brito, um dos actores que integra esta peça.
É um espaço confortável, onde nenhum pormenor foi deixado ao acaso. As fotografias
de anteriores espectáculos espalhadas pelas paredes. Os sofás e as pequenas mesinhas vintage. O odor agradável que paira no ar. As pessoas do teatro
são atenciosas e cirandam por ali, a certificar-se de que está tudo coordenado para receber o público que chega. Estarão connosco na plateia umas trinta pessoas, num sábado de festas populares. O espectáculo corre sem percalços
e, no final, os actores saem para falar com algum amigo ou familiar que esteve na plateia a assistir.
Há, hoje em dia, um esforço
no sentido de conhecer melhor os públicos das artes e transformar esse conhecimento
num ganho. Sem público
o teatro não se faz. Mas sem actores também não.
Actores anónimos
A maioria dos actores em Portugal não é conhecida do grande público porque não aparece na televisão. Trabalha em estruturas teatrais
existentes um pouco por todo o país. João de Brito, 26 anos, Rui M. Silva, 35 anos, e Ana Ademar, 30 anos, têm em comum o facto de terem “tropeçado” nesta arte a dada altura da vida, sem ter tido qualquer estímulo familiar nesse sentido. Os três começam a trabalhar ainda quando estudantes por convite de alguém, casos de Rui e João, ou com o apoio da escola, como sucedeu a Ana.
João, que se formou na Escola Superior de Teatro e Cinema, na Amadora, teve o primeiro contacto com a área aos 18 anos, num grupo de teatro escolar, em Faro. É
Actores (in)vísíveis
Uma montanha russa, assim é a vida dos actores em Portugal. Ana, Rui e João são três actores habituados a percorrer os palcos do país e habituados à precariedade. São os “intermitentes”. Regulamentação para o sector e educação para a arte é aquilo por que mais anseiam estes profissionais do teatroo único que tem trabalhado sempre na mesma cidade, Lisboa no caso. Mas tanto Ana como Rui têm andado um pouco por todo o país.
Ana, actriz formada pela extinta escola de actores do CENDREV de Évora, inicia-se no teatro aos 13 anos através de um curso de teatro promovido pelo Inatel no Cacém. Estabilizada por agora em Beja, é actriz residente
na Lendias d’Encantar, estrutura na qual também exerce funções de direcção.
Rui, cuja curiosidade inata o fez inscrever-se, aos 18 anos, no curso da Academia Contemporânea do Espectáculo,
no Porto, foi dos três o que passou por mais cidades portuguesas em trabalho, incluindo os Açores. Recentemente
tem estado por Lisboa e colaborado regularmente com o Teatro Meridional.
“Férias obrigatórias”
Todos já passaram por fossos
de desemprego, aquilo a que João chama as “férias obrigatórias”. O trabalho é muito descontínuo, o que faz com que os actores vivam muitas vezes numa montanha russa, emocional e financeira.
Muitos actores dão aulas para tentar dar alguma constância a vencimentos tão flutuantes. João e Ana já deram ambos aulas a crianças e Rui costuma dar formações regularmente em estruturas amadoras ou profissionais.
Todos têm trabalhado sempre a recibos verdes, enquanto “trabalhadores independentes”,
mesmo que o não sejam. “Estive numa estrutura um ano e meio mas passava recibos verdes”, conta Rui. Isto significa que, mesmo quando residentes numa companhia, os actores permanecem, em regra, numa lógica de trabalho precário. “As próprias estruturas sorriem
com isso porque não têm gastos nem responsabilidade
nenhuma para com os actores”, afirma Rui. E isto mesmo tendo horários e local
de trabalho estipulados, trabalhando sob a alçada de uma entidade patronal e recebendo um vencimento regular, coisas que definem o trabalho dependente.
Ana afirma que os colegas da área que estão à frente das estruturas deveriam ser quem melhor entende as dificuldades
deste trabalho descontínuo. Mas são os primeiros a aproveitar-se do estado de desprotecção a que os actores estão sujeitos,
o que “assusta”. “Protecção
social não há nenhuma”,
diz Rui. Em 14 anos de carreira, o actor afirma ter conhecido apenas uma companhia de teatro que faz contratos, cumprindo com as responsabilidades sociais subsequentes.
Subsídio de férias, subsídio
de desemprego, protecção
na doença, baixa de maternidade são coisas que estes profissionais desconhecem.
Todos concordam que os actores são mal pagos em Portugal. “Os ordenados são na sua maioria muito baixos se tivermos em conta que é preciso pagar à Segurança
Social e que são trabalhos temporários (dois ou três meses). Não dá para fazer poupanças ou precaver o período sem trabalho que se segue quando acabas uma produção”, diz Ana. Todos os meses, um trabalhador independente tem que pagar o valor fixo de 159 euros à Segurança Social. João, que defende pagamentos consoante o que se ganha, é peremptório: “Se quero comer, não posso pagar”.
Legislação específica e educação para
a arte
Quando se lhes pergunta o que urge mudar no panorama
teatral em Portugal, é unânime a necessidade de um estatuto específico para os trabalhadores cujo trabalho tem uma natureza intermitente. É para isto que trabalha a Plataforma dos Intermitentes
do Espectáculo e do Audiovisual, uma organização
que luta pela criação de uma legislação específica para estes trabalhadores.
A necessidade de uma educação
para a arte é também coisa que lhes parece premente.
“O que mais temos em Portugal são estruturas a fazer trabalhos medíocres porque o público não exige mais”, afirma Ana. “Há muito para fazer no sentido da captação de públicos e isto é um problema
nacional”. É necessário criar hábitos e fazer o público entender a importância da arte e da cultura no geral. “É nas escolas que o trabalho tem de ser feito”.
Há um desconhecimento enorme relativamente ao trabalho
dos actores, sobretudo os não-mediáticos, que, por isso mesmo, muitas vezes não são reconhecidos enquanto tal pelo grande público. Depois de revelarem que são actores, não é raro haver pessoas que lhes perguntam qual é, afinal, a sua profissão “a sério”.
“Como o resultado final é uma hora de conversa num palco, as pessoas pressupõem
que isso não leva muito tempo. E o que é certo é que para fazer aquela hora de espectáculo foram precisas
muitas horas e muito trabalho”.
O desconhecimento das pessoas face aos trabalhadores
da arte é grande mas “o assustador” é este desconhecimento “estender-se aos lugares do poder”, o que leva a uma “falta de consideração
muito grande”, diz Ana, influenciando decisões “dos executivos camarários e até mesmo do Estado”.
Ana, Rui e João são três actores habituados a percorrer
os palcos do país mas “ninguém os conhece”. Neste sentido a invisibilidade é amiga já que a vida corre na tranquilidade do anonimato. Mas há um outro lado. A total desregulamentação do sector e ausência de direitos no emprego.
Coisas que urge mudar num Portugal ainda tão pouco habituado à convivência com as artes e em que parece que, segundo palavras de Rui M. Silva, “os únicos curiosos pelo que se faz somos nós [os artistas] porque o fazemos”.
Ana Vasconcelos

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